A voz e a vez dos excluídos
(*) João Salame
Muitos críticos podem dizer que o PT
se transformou e, em alguns casos, para pior. Que se rendeu a velhas
práticas da política. Há muito de verdade nisso.
Mas o partido não consegue ser
superado por outras organizações de esquerda porque mantém ainda sólido
vínculo com a maioria da população deserdada das políticas públicas.
Não gosto de personalizar as coisas,
aposto muito nas ações coletivas, mas essa façanha se deve muito a
intuição política de uma personalidade: Lula. Ele mesmo. Tão
defenestrado por seus adversários nos últimos dias. Mas cada vez mais
amado pelas parcelas menos favorecidas da sociedade.
No início da década de 80, Lula
entendeu que a velha forma de representação política da esquerda,
representada pelo partido comunista, havia falido. Que a concepção
autoritária de partido não dava mais conta dos anseios da sociedade.
Identificou que era hora de colocar as grandes massas como agente
político e comandou a organização do setor de vanguarda do operariado,
através do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, berço do
sindicalismo combativo.
Viu mais longe: enxergou a
necessidade de estimular a participação política dos deserdados, dos que
não tinham vaga nos partidos para se candidatar e lançou-se na
organização do Partido dos Trabalhadores. Estimulou ainda instrumentos
como o orçamento participativo, formação de conselhos e outras formas de
representação popular. Em pouco tempo, nas Câmaras Municipais,
Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional começaram a aparecer
trabalhadores rurais, operários, domésticas, semianalfabetos, negros,
homossexuais e outros segmentos discriminados da sociedade.
O sindicalismo se fortaleceu. O PT
conquistou o poder central. As coisas começaram a mudar. Em muitos casos
para melhor. Em outros para pior. O chamado mensalão é apenas um
produto de uma mudança de postura em relação ao status quo. O
sindicalismo e o movimento estudantil perderam autonomia e passaram a
representar corporações a cada dia mais interessadas em sua
autopreservação e sem nenhum compromisso com as causas maiores da
sociedade.
O movimento de professores, do
funcionalismo, dos trabalhadores rurais e de diversos segmentos
organizados descolaram-se da sociedade. Ao contrário, passaram a brigar
contra ela exigindo cada vez mais recursos públicos em benefício
próprio, e deixando de lado o sentimento de generosidade para com os
setores excluídos.
Para deter um pouco essa pressão
cada vez maior por nacos do dinheiro público editou-se a Lei de
Responsabilidade Fiscal, uma cria do PSDB, mas que logo o PT e todos os
democratas entenderam como instrumento correto para deter a completa
sangria dos recursos públicos. Talvez esteja na hora de debatermos não o
máximo que deve ser gasto com o funcionalismo, mas o mínimo que deve
ser gasto dos recursos públicos com a sociedade através de políticas
públicas.
De outro lado, os partidos políticos
e suas lideranças, representando essa “nova organização” da sociedade,
também aumentaram seu apetite pela autopreservação. A consequência foi o
aumento das verbas parlamentares, do empreguismo, dos privilégios, das
benesses. No Judiciário ocorreu o mesmo movimento.
Lideranças políticas e movimento
social organizado se deram às mãos para comandar o orçamento público. A
briga é para saber quais partidos e seus aliados comandam o botim.
Dirigentes partidários, prefeitos, vereadores, deputados, senadores,
governadores, secretários, ministros, o poder judiciário, o
funcionalismo público e meia dúzia de empresários representam menos de
3% da população no Brasil, nos Estados e nos Municípios. No entanto, na
maioria das vezes, abocanham mais de 90% dos recursos públicos.
Não sobra dinheiro pra melhorar a
saúde, a educação, a infraestrutura das cidades. Uma verdadeira casta
que se consolidou e sangra os recursos públicos. Com raras e honrosas
exceções.
Quando a essa casta se agregam
algumas categorias organizadas da sociedade o controle sobre o orçamento
é quase total. Não sobra praticamente nada para a grande massa de
excluídos. Daí o PT, em muitas cidades, já começar a ser enxergado como
igual aos demais. Ter começado a perder sua natureza transformadora, por
ter se rendido a essas corporações.
Como o governo federal tem mais
recursos que os estaduais e municipais, existe no orçamento da União uma
margem um pouco maior de manobra para conceder um pouco mais aos
excluídos. Isso mantém a fleuma do PT.
Lula entendeu na década de 80 que a
vez era do movimento social organizado. O PT “bombou”. De uns tempos
para cá ele percebeu que é a vez dos excluídos. Consolidou o
bolsa-família como política compensatória para os segmentos mais
fragilizados e desorganizados da sociedade e empreendeu várias outras
políticas para esses setores.
Ainda é pouco.
Na última quinta-feira participei do
14º. Encontro Nacional do Morhan – o movimento que combate o
preconceito e luta em defesa dos hansenianos. Tive a honra de ser um dos
35 personagens homenageados pelo movimento.
Lula estava lá.
No seu discurso foi na ferida: “os
empresários, os professores, o pessoal da cultura, os sindicatos,
conseguem muito do que querem junto ao governo. E os excluídos? Tudo pra
eles é difícil. Nós temos que inverter essa lógica e mostrar que pra
eles tudo é possível”, falou.
Foi ovacionado.
Foi emocionante.
Enquanto boa parte da esquerda,
inclusive a que se diz revolucionária, continua presa aos velhos
clichês, continua aprisionada pelo corporativismo de boa parte dos
líderes sindicais e da chamada sociedade civil organizada, Lula
percebeu, ainda que intuitivamente, que o Estado precisa distribuir mais
seus recursos para os deserdados.
Que todo o dinheiro não pode ser
gasto apenas com os setores mais organizados da sociedade. Por isso
continua amado pelo seu povo.
Na sua sensibilidade está a
possibilidade do PT se reciclar novamente, ainda que o partido possa
fazer essa transformação sem ter a compreensão teórica da necessidade
real dessa mudança.
Não quero com esse texto me colocar
contra os movimentos organizados da sociedade e categorias importantes
como a dos professores, dos trabalhadores rurais e do funcionalismo.
Eles são muito importantes.
Sempre respeitei e defendi a luta organizada dos trabalhadores.
Ao contrário, avalio que os deserdados é que precisam se organizar. Eles são a maioria.
O que critico é o fato de que a
maioria da vanguarda desses movimentos perdeu a sensibilidade, luta
apenas por suas corporações e se esquece da maioria da sociedade.
Defende os excluídos apenas na retórica. Quando se junta a políticos
apenas interessados em seus privilégios, a sociedade paga um preço alto.
“Igualdade, liberdade e fraternidade”. Nunca, como agora, essas bandeiras da gloriosa Revolução Francesa foram tão atuais.
Eu, em crise com o meu partido, que
sempre apostei no coletivo, confesso que me sinto um pouco lulista. Ele
está sendo uma voz quase solitária em defesa dos excluídos. A cada dia
eles se multiplicam, com a internet se comunicam e em pouco tempo vão
tornar pó as cúpulas partidárias, as estruturas sindicais e a atual
forma de representação política, que completa duzentos anos sem se dar
conta que o mundo mudou.
(*) João Salame é jornalista e prefeito de Marabá
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